Wálter Maierovitch      3 de julho de 2011 às  15:05h         
O Brasil continua mergulhado nas trevas e demora em adotar  medidas eficazes para contrastar o fenômeno sociossanitário representado  pelo crack, cujo consumo se espalhou pelas cidades brasileiras. Diante  desse quadro, com prefeitos e governadores despreparados, o governo  federal anunciou, em fevereiro deste ano, um acanhadíssimo projeto de  centros regionais de referência, e isso para capacitar 15 mil  profissionais de saúde em 12 meses.
 
O desatino maior deu-se na capital de São Paulo, onde o prefeito  Gilberto Kassab já promoveu, com o auxílio da polícia, a internação  compulsória de usuários frequentadores da Cracolândia, localizada na  degradada zona central. Depois de obrigados a se desintoxicar em postos  de saúde, os dependentes voltaram rapidamente à Cracolândia para novo  consumo. Quanto à polícia paulista, revelou-se incapaz de interromper a  rede dos seus fornecedores de crack.
 
No momento, Kassab pensa em uma segunda overdose de desumanidade, e o  Rio de Janeiro, com falso discurso humanitário, repete, em essência, a  fórmula piloto do alcaide paulistano, ou seja, internações compulsórias  para desintoxicação. Kassab vem sendo contido pelo secretário para  Assuntos Jurídicos, que parece ter percebido a afronta à liberdade  individual, constitucionalmente garantida.
 
Como o prefeito sonha com a reurbanização do centro da cidade, os  usuários de crack viram um estorvo para a concretização de sua meta. E  quando colocada a Polícia Militar em ronda permanente pela Cracolândia,  os consumidores, em farrapos, migram para o vizinho bairro de  Higienópolis, tido como aristocrático. Kassab sofre, então, a pressão de  uma classe social privilegiada, que não suporta nem estação de metrô no  bairro, por entender inconveniente a presença dos não residentes. Mais  ainda, muitos higienopolistas reagem, quando topam com um drogado, como a  desejar uma solução tipo Rio Guandu, época do governo Carlos Lacerda no  Rio.
 
Diante das multiplicações das cracolândias, o governo federal tarda  em ousar e partir para a adoção de narcossalas, também chamadas de salas  seguras para consumo. Até o Nobel de Medicina, Françoise Barre Simousse  (isolou o vírus HIV-Aids), preconizou a adoção de narcossalas na  França, em face da resistência do direitista presidente Nicolas Sarkozy,  que prefere a cadeia para os usuários, como FHC e Serra nos seus  governos.
 
A respeito, o Conselho Municipal parisiense tenta derrubar a  proibição de Sarkozy e está pronto para implantar uma narcossala piloto  em Paris. Para os membros das respeitadas e francesas Associação  Nacional para a Prevenção do Álcool e das Dependências (Anpaa) e  Associação para a Redução de Riscos (AFR), a “história epidemiológica e a  experiência clínica demonstram que o projeto de uma sociedade sem  consumo de drogas é ilusório. As posturas proibicionistas e repressivas  são inócuas-. Isso porque a cura raramente se dá apenas com a  abstinência”. A abstinência, frisaram, causa exclusão. Ou seja, afasta  dos sistemas de proteção e de acompanhamento uma parcela frágil e  frequentemente marginalizada de consumidores- de drogas.
 
Barre Simousse recomenda a adoção da política de Frankfurt  implementada em 1994, ao enfrentar o problema representado por 6 mil  drogados que vagavam pelas ruas.  A experiência espalhou-se por outras  oito cidades alemãs e vários países-, como Suíça e Espanha, aderiram aos  ambientes fechados de consumo. Nos EUA, existem salas seguras para uso  de metadona, droga substitutiva à heroína.
 
Com as narcossalas de Frankfurt, o número de dependentes caiu pela  metade até 2003. Os hospitais e os postos de saúde, antes delas,  atendiam 15 casos graves por dia, com um custo estimado de 350 euros por  intervenção.
 
O sistema alemão de Frankfurt oferece acolhida aos que vivem  marginalizados e em péssimas condições de saúde e econômicas. Sem  dúvida, virou uma forma de aproximação, incluindo cuidados médicos,  informações úteis e ofertas de formação profissional e de trabalho. Nas  oito cidades alemãs e entre os usuários dos programas de narcossalas,  caiu o índice de mortalidade em virtude da melhora da qualidade de vida.  -E pesquisas anuais sepultaram a tese de que as narcossalas poderiam  estimular os jovens a ingressar no mundo das drogas.
 
As federações do comércio e da indústria alemãs apoiam os programas  de narcossalas com 1 milhão de euros. E ninguém esquece a lição do  professor Uwe Kemmesies, da Universidade- de Frankfurt: “Podemos  reconhecer que a oferta de salas seguras para o consumo de drogas  melhorou a expectativa e a qualidade de vida de muitos toxicodependentes  que não desejam ou não conseguem abandonar as substâncias”.
Fonte:http://www.cartacapital.com.br/politica/cracolandias-a-hora-das-narcossalas